Inteligência Política e Manutenção do Poder 
em Nicolau
Maquiavel (anotações)
por Fábio Régio
Bento
O
Príncipe, escrito em 1513 e publicado em 1531, quatro anos depois da morte de
Nicolau Maquiavel (1469-1527), após mais de cinco séculos de sua redação
continua sendo reproposto permanentemente por meio de várias traduções, nem
sempre coerentes com o texto de 1513. De fato, como constatou Marques  (2006, 
p.41),  o  Maquiavel 
de  O  Príncipe 
ainda  continua  sendo 
apresentado  como  “um professor do mal”. Ao contrário, porém,
do que afirma o senso comum, o secretário florentino não foi maquiavélico.
Neste  artigo, por meio do estudo direto de O
Príncipe com o texto em  italiano  de 
1513 (MACHIAVELLI, 1988), e com o auxílio da tradução de Maria Lucia
Cumo (MAQUIAVEL, 1996), analisaremos as conexões em O Príncipe entre
inteligência política e manutenção virtuosa do poder, sustentando que O
Príncipe não é um livro amoral, nem imoral, mas de moral política da manutenção
inteligente do poder segundo o que Maquiavel compreende por virtudes políticas.
Em
1513, quando Maquiavel escreveu O Príncipe, a Itália ainda não existia na forma
política como a conhecemos hoje. Havia um território denominado península
Itália e um idioma relativamente compartilhado, criado séculos antes por Dante
Alighieri. A unidade da Itália ainda era um sonho político, uma utopia,
entendida como projeto, meta a ser realizada. Na Europa, Portugal, Espanha,
França já haviam  unificado suas monarquias,
mas na Itália ainda não havia unidade nacional. De fato, na  época 
de Maquiavel “a Itália estava dividida em cinco grandes Estados: 1) o
Reino de Nápoles, ao sul; 2) os Estados Pontifícios e 3) a República de
Florença, ao centro; 4) a República de Veneza e 5) o Ducado de Milão, ao norte”
(PIZZORNI, 1989, p.41). Nesse contexto de não-unidade nacional, de dominação
estrangeira, Maquiavel ambiciona a unidade política nacional da península
itálica sob a forma de uma monarquia nacional comandada por um príncipe novo,
sábio, prudente, corajoso que viria da casa dos Médicis. Como resumiu Mario
D’Addio (1995, p.298),
a
exortação dirigida a Lourenço de Médicis no capítulo final do Príncipe, para
que  ele 
assuma  a  iniciativa 
de  liberar  a 
Itália  do  estrangeiro, 
mediante  a  constituição de um Estado forte italiano na
Itália centro-setentrional, demonstra que 
a  análise  conduzida 
no  Príncipe  se 
traduz  no  final 
em  um  específico programa de ação política.
Ora,
o sonho de Maquiavel, como sabemos, ocorrerá somente mais de três séculos depois,
no final de 1800, com a proclamação do Reino da Itália. Como explicar o sucesso
inoxidável  de  O 
Príncipe,  meio  século 
depois  de  sua 
redação,  dado  que 
nem  mesmo realizou o objetivo
imediato ad hoc para o qual foi
escrito? Explica-se o sucesso científico e político de O Príncipe a partir da
compreensão da palavra “clássico”, que significa de valor permanente. Assim, o
que é que tem valor permanente em O Príncipe? Sua intenção era identificar o
perfil  do príncipe ideal para a
construção de uma monarquia nacional que unificasse politicamente a península
itálica. Para isso, ele elaborou uma sua análise das relações políticas, com emprego
de um método  original e com a elaboração
de conteúdos políticos também diferentes dos de seu tempo. 
Tal
método e conteúdo de Maquiavel, em O Príncipe, tornaram-se de interesse geral,
permanente. O que ele escreveu ad hoc
para o príncipe que unificaria a Itália, conforme seu desejo político,
permaneceu como clássico da ciência e da política prática. Mas o que há de
original e permanente (clássico) em O Príncipe? Para o italiano Benedetto Croce
(1931, p.181), “contra os que concebiam o Estado como instituto moral e
religioso submisso às regras da piedade cristã, convinha gritar  que 
os  Estados  não 
se  governam  com 
os  pais-nossos; e que exigem, em
vez, virtudes”.
As
virtudes políticas do príncipe ideal, segundo Maquiavel, são as necessárias à
realização de seu objetivo principal. Assim, para a unificação da Itália e para
a estabilidade política de qualquer principado, seria necessário um príncipe
focado na conquista e manutenção inteligente do poder. Quais virtudes políticas
são necessárias à manutenção inteligente do poder? Desenvolveremos nossa
resposta a essa interrogação investigativa 
por  meio de dois itens.  O 
primeiro,  sobre  o 
método  empregado  por Maquiavel na análise da realidade  política 
de  seu  tempo. 
O  segundo,  sobre 
o  que consideramos ser o elemento
cognitivo e político central da análise política de Maquiavel em O Príncipe, a
saber, as conexões entre inteligência política e manutenção do poder.
1.Método empregado por Maquiavel em O
Príncipe 
Maquiavel
escreve O Príncipe com uma intenção específica, dirigida, um livro endereçado
ao Magnífico  Lourenço de Médicis, a quem
explica que  não  oferecerá “cavalos,  armas, 
ricos  tecidos  e 
pedras  preciosas”, mas um  presente 
diferente,  seu “conhecimento das
ações dos homens  com  poder”, 
ao  qual  chegou 
pela  sua  “longa experiência” direta como secretário
político de Florença, e pelo “estudo do mundo antigo” (1996, p.09). Suas
análises sobre as relações reais de poder, e sobre a natureza do povo e dos
príncipes nas suas relações políticas - objeto central de O Príncipe -, Maquiavel
as reuniu “em um pequeno volume” (Ibidem, p.09) e as enviou a Lourenço de
Médicis para que tal volume o ajudasse a realizar “grandes metas” (Ibidem,
p.10).  De qual grande meta se tratava? A
isso ele retornará no capítulo final de O Príncipe, intitulado “Exortação para retomar  a 
Itália  e  libertá-la 
dos  bárbaros”,  onde 
afirma  que,  segundo 
sua  avaliação, chegara  o 
momento  favorável  para 
que  um  “novo 
príncipe”,  “prudente  e 
valoroso” (Ibidem, p.151) pudesse agir para superar as divisões da península
itálica.
Esse
era o objetivo que levou Maquiavel a escrever O Príncipe. Suas análises das relações
políticas de poder, seu realismo metodológico típico, inserem-se nessa moldura idealista
do Maquiavel italiano patriota que deseja que seja  construída 
aquela  pátria unificada que ainda
não existe na prática, na península itálica dividida politicamente. “Eu amo  a 
minha  pátria  mais 
do  que a alma”, revelou
expressamente  Maquiavel  (apud PIZZORNI, 1989, p.48). E é nessa
moldura patriótica ideal, utópica da unificação da Itália que está inserido o
quadro de sua análise da política real. Ora, não vamos aqui analisar a história
da moldura. Vamos analisar o quadro, as análises de conteúdo elaboradas por
Maquiavel, que  se  tornaram 
clássicas,  permanentes. As
análises políticas que o secretário florentino fez pensando em sua utilidade local,  conjuntural, 
foram  reconhecidas como válidas em
outros espaços e tempos políticos.
Em
O Príncipe, Maquiavel identificou e analisou alguns elementos do núcleo cognitivo
central da complexidade das relações políticas de poder que tornaram sua obra célebre,
vital, atual na compreensão científica das relações materiais de poder, e que
ele apresentou por meio de classificações, tipologias políticas fundadas em
suas experiências políticas como secretário florentino e em suas leituras da história
política. De fato, para Villari,  “a  base 
científica”  do  “sistema 
científico”  de  Maquiavel 
é  ao  mesmo 
tempo teórica  e  prática, 
“se  funda  na 
experiência  e  na 
história,  a  segunda 
continuamente reconfirmando as conclusões da primeira” (1989, p.21). 
A  opção 
de  Maquiavel  por 
uma metodologia indutiva,  ou  seja, 
que  a  partir 
da análise da realidade elabora uma sua interpretação - exercício
metodológico praticado ao logo de todo o Príncipe - é explicitada no Capítulo
XV da obra, no qual analisa as relações dos príncipes com súditos e aliados:
Como  sei 
que  muitos  escreveram 
sobre  esse  assunto, 
creio  que  serei considerado presunçoso, sobretudo porque
discordarei da opinião dos outros. Mas como tenho a intenção de escrever algo
útil para quem a queira entender, pareceu-me conveniente ir atrás da verdade
efetiva da coisa, em vez da  
imaginação.  Muitos  imaginaram 
repúblicas  e principados que nunca
se viu nem se soube que fossem verdadeiros por serem tão diversos de como se
vive para como se deveria viver. Aquele que deixa o que se faz pelo que se
deveria fazer aprende a se arruinar em vez de se preservar (1996, p.91).
A
coisa, real, material é que interessa a Maquiavel, posição diferente da
metafísica política, com foco em ideias e ideais em vez de  coisas, reais. Para ele, o ideal precisa se
sustentar no real.
Em
tal Capítulo XV, Maquiavel sustenta que trocar a busca da compreensão do que se
faz, pela compreensão do dever ser, é um erro político-metodológico que  pode 
ser  fatal  para 
o  príncipe.  Assim, 
ele  não  nega  o  ideal 
(projeto)  político, mas rejeita a
inversão da ordem metodológica que troca a prioridade da análise do que se faz
pela adesão, sem sustentação na análise fática, ao que se deveria fazer.
Essa  metodologia 
maquiaveliana  para  a  qual  são  fantasias  os 
projetos  sem sustentação  no 
estudo  da  realidade, 
considera  a  ética 
descritiva (compreensão do comportamento real) prioritária em relação à
metafísica normativa, e elabora também ela uma ética (indutiva) normativa, a
indicação do que um príncipe sábio deve fazer para a manutenção inteligente do
poder, analisando seus custos, mas a partir da análise do comportamento
político real, sem ter como ponto de partida o que poderia ser  um 
amordaçamento  da  compreensão 
do  real  pela  imposição  de 
uma  metafísica normativa a
priori, sem conexão vital com a realidade de fato. E é com tal metodologia indutiva,
com suas classificações e tipologias, presente em todo O Príncipe, não apenas no
Capítulo XV, que Maquiavel fará suas análises políticas sobre as relações
materiais de poder.
2.Conexões entre inteligência política e
manutenção do poder
Apesar  de 
tantas  traduções e  reedições, 
a  obra  O Príncipe ainda continua sendo compreendida
mais pelo que não é do que pelo que é. O Príncipe não é um manual de maldades
políticas necessárias para a manutenção do poder a qualquer custo. Não é um
receituário de crueldades políticas que seriam coercitivas.
Maquiavel
não foi maquiavélico, no sentido apresentado por vários dicionários da língua portuguesa:  maldoso, 
perverso,  diabólico,  e 
nunca  escreveu  a 
frase  “os  fins 
(bons) justificam  (o  emprego 
de)  os  meios 
(imorais)”.  Maquiavel  foi 
um  idealista  realista: elaborou de forma indutiva uma
síntese analítico-descritiva das relações reais, materiais de poder (seu
realismo) em função do seu objetivo ideal, político-nacional: a unificação da
península itálica. 
Maquiavel
não separou a política da moral, mas da moral política metafísica de seu tempo.
Assim, O Príncipe não é um livro de amoralidade ou de imoralidade política, mas
um livro sobre o comportamento moralmente correto do príncipe virtuoso, segundo
as “virtudes políticas” (CROCE, 1931, p.181) necessárias do ponto de vista da
cognição da realidade e da ação política do príncipe prudente, resoluto na
manutenção inteligente do poder (dever moral-político do príncipe sábio).
O
Príncipe é um tratado involuntário sobre a conquista e manutenção inteligente do
poder. Maquiavel analisa várias situações de conquista, perda e manutenção do
poder e identifica o perfil político ideal do novo príncipe (politicamente
virtuoso) que unificaria a Itália e seria capaz de mantê-la estavelmente unida.
A
preocupação de Maquiavel com a conquista e manutenção inteligente do poder revela
a sua quase obsessão pela ordem política, pela estabilidade política, pela
unidade política  nacional  que 
ele  almejava  indicar 
como  construir  por 
meio  do  estudo 
das experiências de unidade (ou não-unidade) política dos principados
reais por ele analisados sob  tal  ótica 
da  unidade  política 
do  principado  como 
referência  para  a 
construção  da unidade política
nacional da Itália.
Para  Maquiavel, 
o  bom  governo, 
o  bom  principado 
é  aquele  que 
dura,  resiste, supera  as adversidades,  é aquele dotado de  unidade-estabilidade política  pelas vias da virtude política e bom
aproveitamento das ocasiões (fortuna). Tal estabilidade-unidade política  gera 
felicidade  nos  principados: 
“enobreceram  a  própria 
pátria  e  deixaram-na 
felicíssima”  (1996,  p.39). 
Maquiavel,
portanto, não defende a  tirania, mas uma  estabilidade 
inteligente  e firme, fundada na
análise da complexidade das relações entre governantes e governados, na análise
da complexidade da gestão do poder, com o dever de sobreviver politicamente na
mutabilidade dos interesses, dos humores coletivos, dos ânimos acirrados num
cenário de disputas permanentes. Nesse cenário de conflitos, o pensador florentino
não sustenta simploriamente a manutenção do poder a qualquer custo, mas indica
que seja feita uma análise detalhada, profunda, séria da complexidade e previsibilidade
dos custos políticos desejados ou indesejados decorrentes das decisões a serem
tomadas. 
Em
O Príncipe está contida a obrigação moral-política, coercitiva, de se governar com
inteligência e firmeza, pela durabilidade e estabilidade do seu território
político de governo. Tal regra moral forte, permanente em O Príncipe
desautoriza a crítica segundo a qual tal livro seria amoral, ou mesmo imoral.
Trata-se, em suma, de um livro sobre o dever moral-político da manutenção
(estabilidade) inteligente do poder conquistado. De fato, já no primeiro
capítulo de O Príncipe, Maquiavel estabelece diferenças entre  principados 
adquiridos  (novos  principados) 
e  os  principados 
hereditários  ou herdados, sob a
ótica da norma da estabilidade do Estado-principado. Para ele, “nos Estados
hereditários e acostumados à presença da família de seu príncipe, as dificuldades  para 
manter  o  poder 
são  muito  menores 
se  comparadas  às 
que  podem  se apresentar para mantê-lo em um principado
novo” (1996, p.15). Para isso, “é suficiente que o príncipe não abandone os
modos de governo de seus predecessores” (Ibidem, p.15), pressupondo  que 
junto  com  o 
principado,  seria  herdada 
pelo  príncipe  novo 
também  a estabilidade alcançada
por seu predecessor.
Essas
classificações, descrições, tipologias referem-se aos principados herdados ou
novos, como afirmamos, e, também, a outras temáticas fáticas como a diferença
entre principado civil e principado eclesiástico; diferença entre principados
novos conquistados com armas próprias, ou armas alheias, sendo que, em caso de
principados com armas alheias, Maquiavel analisa a situação de principados que
usam milícias mercenárias ou exércitos auxiliares, destacando que “um príncipe
sábio sempre foge destas milícias e utiliza as suas próprias. Prefere perder
com as suas a vencer com a dos outros” (Ibidem, p.82). Discorre, também, por
meio de comparações, sobre as relações entre fortalezas e manutenção do poder,
identificando as situações onde elas são mais ou menos necessárias (Capítulo
XX). 
Segundo
a ética política normativa de O Príncipe, o poder conquistado deve ser mantido.
Mas de que forma? A qualquer custo? Maquiavel sustenta que a manutenção do poder  é 
uma  necessidade,  um 
dever  do  qual 
derivam  outros  deveres 
relacionados  à capacidade   do  
príncipe   de   descrever,  
interpretar   e   avaliar  
o   contexto   político caracterizado  por 
disputas  e  variações 
de  interesses  e 
humores  coletivos  dos 
sujeitos envolvidos  nessas  disputas. 
Dessa  forma,  em 
síntese,  o  que 
Maquiavel  sugere  para  a
realização de seu objetivo maior (unificação da Itália) é a figura-ideal do
príncipe sábio e corajoso, cujo perfil ele identifica nos casos que analisou de
gestão do poder caracterizada pela 
estabilidade  (manutenção  do 
poder).  O  perfil  político 
ideal  de  príncipe 
montado indutivamente  por  Maquaivel 
não  é  o 
do  príncipe  perverso, 
cruel,  maquiavélico,  que busca a manutenção do poder a qualquer
custo, mas o do príncipe inteligente e corajoso, ou seja, maquiaveliano, que
analisa os custos políticos previstos e indesejáveis de suas ações pela
estabilidade-unidade política do Estado-principado  (manutenção do poder), tomando decisões
resolutas orientadas por tal cálculo de inteligência política.
2.1.O príncipe ideal segundo Maquiavel
Ao
longo de todo O Príncipe emerge essa relação entre manter o poder “de forma segura
e duradoura” (1996, p.19), e as habilidades (virtudes políticas) necessárias
para a realização de tal meta política fundamental. O príncipe ideal supera “as
dificuldades e as oposições que estão em seu caminho” (Ibidem, p.125). Ele é
sábio, prudente, corajoso, determinado, 
com  “ânimo  forte 
e  ambições  grandes” 
(Ibidem,  p.51),  ou 
seja,  não  é incauto, 
ingênuo,  pusilânime,  irresoluto, 
hesitante.  Não  escolhe 
a  neutralidade:  “é  um amigo
verdadeiro ou um inimigo verdadeiro” (Ibidem, p.130). Maquiavel cita o exemplo da
tuberculose como metáfora política dos “assuntos de Estado”: “No início o mal é
fácil de  curar  e 
difícil  de  diagnosticar. 
Mas,  com  o 
passar  do  tempo, 
não  tendo  sido 
nem  reconhecida  nem 
medicada,  torna-se  fácil 
de  diagnosticar  e  difícil 
de  curar”  (Ibidem, p.22). O príncipe sábio é capaz de
prever-identificar os males políticos antes que cresçam e torne-se impossível
remediá-los, mas sua principal característica é não ser odiado pelo povo. O
príncipe sábio, prudente, firme tem o povo a seu favor. De fato, para
Maquiavel, 
de  um 
povo  inimigo,  o 
príncipe  nunca  poderá 
se  proteger por  serem muitos. Dos nobres poderá, pois são
poucos (...). O príncipe necessita viver 
sempre  com  aquele 
mesmo  povo,  mas 
não  precisa  dos 
nobres, podendo  fazer  e 
desfazer,  qualquer  dia,  tirar  e 
dar  prestígio,  como melhor lhe parecer (Ibidem, p.60).
Portanto,
não é conforme o pensamento de Maquiavel a interpretação segundo a qual  um 
príncipe  deveria  governar 
com  crueldade,  manter 
o  povo  permanentemente aterrorizado  para 
poder  manter  o 
poder.  Para  o 
secretário  florentino,  “quem 
se  tornar príncipe pelos favores
do povo deve mantê-lo amigo” e, de outro lado, “quem se tornar príncipe com os
favores dos grandes e contra o povo deve, antes de tudo, tentar conquistá-lo,  o 
que  é  fácil, 
se  o  proteger” 
(Ibidem,  p.61).  Em 
suma,  para  ele, 
“a  um  príncipe 
é necessária a amizade do povo, do contrário, não terá salvação na
adversidade” (Ibidem, p.62). 
No  capítulo 
XX,  tratando  sobre 
as  fortalezas  como 
instrumentos  de  proteção, Maquiavel  destacará 
que  “a  melhor 
fortaleza  que  existe 
é  não  ser  odiado 
pelo  povo. Porque, mesmo que
tenhas fortalezas, se o povo sentir ódio por ti, elas não te salvarão”, dado  que 
“nunca  faltarão  estrangeiros 
para  ajudar  o  povo  rebelado” 
(Ibidem,  p.128). Argumento  que 
vale  também  na 
defesa  do  príncipe 
contra  as  conspirações, 
pois  elas necessitam do apoio
popular para progredirem: “um dos remédios mais poderosos que um príncipe pode
ter contra uma conspiração é não ser odiado por todos”, pois “quem conspira
acredita que, com a morte do príncipe, irá satisfazer o povo”, e sem apoio do povo
o conspirador sabe que não conseguirá realizar seu objetivo político (Ibidem,
p.110). E ainda: “um príncipe que possua uma cidade forte e não seja odiado não
pode ser atacado e, se o fosse, quem o atacasse partiria envergonhado” (Ibidem,
p.66).
Para
Maquiavel, o príncipe sábio, cauto, firme compreende que a manutenção do poder
necessita da “benivolenzia populare” (1988, p.95), do apoio do povo, ou
“consenso popular” (1996, p.111), segundo a tradução de Maria Cumo. Tal
príncipe, em suma, “deve estimar os nobres, mas não fazer-se odiar pelo povo”
(Ibidem, p.113). 
Maquiavel
se dissocia assim do provérbio de seu tempo segundo o qual “quem se apoia no
povo, apoia-se na lama”, pois, a seu aviso, isso vale para o “cidadão privado
que pretenda ser libertado pelo povo” (Ibidem, p.62). “Mas quando quem se apoia
no povo”, pondera Maquiavel, “é um príncipe que sabe comandar, que tem bom
coração, que não se assusta na adversidade, que sabe administrar a sua cidade e
com o seu ânimo e as suas leis exorta o povo, nunca será enganado por ele e
terá feito boas fundações” (Ibidem, p.62). 
Em  tal  ponderação, 
percebe-se  explicitamente  o  que  já 
se  encontra  de 
forma implícita em outras passagens de O Príncipe: segundo Maquiavel,
para a manutenção do poder,  o  príncipe 
ideal,  que  é 
sábio,  cauto,  prudente, 
firme  necessita  de 
um  conjunto complexo, interligado
de virtudes políticas tais como saber comandar, ter bom coração, não se
assustar na adversidade, saber administrar sua cidade com ânimo e na
legalidade. Constatações maquiavelianas. Diferentes das  interpretações  maquiavélicas que ainda persistem no senso
comum.
2.2.O príncipe, o povo e os custos
políticos da manutenção do poder 
É justamente
a construção da “benivolenzia populare” (1988, p.95, 96) um dos critérios
fundamentais que orientam o príncipe sábio, prudente e firme de Maquiavel nos seus
cálculos dos custos previstos e imprevistos das tomadas de decisão políticas
pela manutenção inteligente da unidade política. A partir de tal critério,
Maquiavel constatará que  o  príncipe 
que  gasta  demais 
transformará  o  contentamento 
popular  imediato  em descontentamento desestabilizador, uma vez
que provavelmente terá de adotar políticas de 
contenção  de  despesas 
para  compensar  sua 
liberalidade  econômica  antecedente, transformando o humor favorável
em desfavorável (Capítulo XVI, 1996, p.95-98). Por isso, Maquiavel considerará
politicamente virtuoso o príncipe parcimonioso, avaliando a parcimônia  como 
instrumento  mais  adequado 
que  a  liberalidade 
na  relação  política exitosa entre “benivolenzia populare”
e estabilidade do poder.
Segundo
Maquiavel, há uma relação de recíproca dependência, necessidade, entre príncipe  e  povo. 
Para  ele,  “um 
príncipe  sábio  deve 
pensar  no  modo 
em  que  os  seus
cidadãos,  sempre  e 
em  qualquer  tempo, 
precisem  do  Estado 
e  dele.  Assim, 
ser-lhe-ão sempre  fieis”  (1996, 
p.63).  A  relação 
entre  príncipe  e 
povo,  segundo  o 
pensador florentino, não é uma relação de amor romântico, mas uma
relação de compartilhamento de interesses materiais interdependentes, uma
relação de recíproca sobrevivência. Nessa relação  fática 
funda-se  a  conexão 
delicada,  complexa  entre 
manutenção  do  poder (estabilidade política), proteção
recíproca e consenso ou “benivolenzia populare”. 
Dessa
forma, diferente do príncipe que vive voltado para “os prazeres da vida”
(Ibidem,  p.87),  “ocioso” 
(Ibidem,  p.90),  “efeminado 
e  pusilânime”  (Ibidem, 
p.92), Maquiavel destaca que o príncipe virtuoso é exitoso porque
asceta: conquista as virtudes políticas 
necessárias  para  a 
manutenção  inteligente  do  poder,  liderando 
suas  forças militares (Capítulo
XIV), exercitando-se na ciência e arte da conquista e manutenção da estabilidade
política, por meio das virtudes políticas, com o aproveitamento das ocasiões (fortuna).
Em tempos de paz, tal príncipe asceta se prepara para as prováveis adversidades
“com  ações  e 
com  a  mente” 
(Ibidem,  p.88),  “de 
modo  que  a 
sorte,  quando  mudar, encontre-o pronto para resistir”
(Ibidem, p.90). Para Maquiavel, “quanto ao exercício da mente, o príncipe deve
ler livros de história, refletir sobre os atos dos grandes homens. Ver como
foram conduzidas as guerras, examinar os motivos de suas vitórias e derrotas para
destas fugir e imitar as primeiras” (Ibidem, p.89). O estudo, portanto, não
para a ilustração aristocrática, mas como exercício vital de virtude política
para a manutenção inteligente do poder.
2.3.O ser humano nas relações de poder
segundo Maquiavel
No  perfil 
ideal  do  príncipe 
construído  por  Maquiavel, 
calculista  na  busca 
da manutenção do poder, está contida sua compreensão moral sobre a
natureza humana, para ele ambígua, mutável, variável. Dessa forma, emerge que o
realismo de Maquiavel possui duas notas típicas: é realismo metodológico (ele
busca de modo indutivo a verdade efetiva da coisa) e realismo
político-antropológico: sustenta que o ser humano (súditos e nobres) é de humor
variável conforme a realização ou não de seus interesses materiais, revelando o
que é ou representando o que não é. 
Maquiavel,
ao afirmar que o príncipe desenvolve suas atividades de poder “entre tantos que
não são bons” (1996, p.91), caracteriza o lugar político do príncipe como lugar
ameaçado pelas possibilidades constantes de traição, mentira, falsidade,
não-fidelidade entre súditos e nobres aliados. Por isso, para o secretário
florentino, o príncipe inteligente é prudente, identifica e interpreta o humor
real dos seus interlocutores, tomando decisões fundadas nessa interpretação. Em
situações de humor desfavorável, “para um príncipe é necessário, querendo se
manter, aprender a poder ser não bom e usar ou não usar isso, conforme  precisar” 
(Ibidem,  p.91-92).  O 
príncipe  sábio,  portanto, 
não  é  ingênuo, 
é prudente,  ou  melhor, 
na  inteligência  indutivo-analítica  do 
príncipe  está  contida 
a prudência política, com seus cálculos de probabilidade, com sua
capacidade de prever o péssimo que mesmo sendo indesejado é provável. 
Ser
“não bom” não significa ser mal, como infelizmente encontramos em algumas traduções
equivocadas de O Príncipe em língua portuguesa. No texto original, lemos:  “Onde 
è  necessario  a 
uno  principe, volendosi mantenere,
imparare a potere essere non buono, et usarlo e non usare secondo la necessita”
(1988, p.83). Assim, Maquiavel não recomenda que o príncipe seja mau, mas  firme, 
resoluto,  não-ingênuo,  prudente, 
não-bom. Para se defender de cidadãos particulares, poderia e deveria
usar as medidas previstas nas leis contra conspirações, o que na época
significava inclusive aplicar a pena de morte. Mas a relação com o povo
(súditos) é mais complexa. Se Maquiavel recomendasse ao príncipe de agir com
maldade contra o povo, como método de manutenção do poder, ele estaria negando a
lógica geral de seu livro: “a um príncipe é necessária a amizade do povo, do
contrário, não terá salvação na adversidade” (1996, p.62); “a melhor fortaleza
que existe é não ser odiado pelo povo” (Ibidem, p.128).
Em
tal quadro hermenêutico compreende-se a pergunta do Capítulo XVII: deve um
príncipe ser amado ou temido? O que significa ser temido? Seria o mesmo que ser
odiado?  E  por 
quem  ser  temido, 
por  cidadãos  privados, 
nobres,  ou  pela 
maioria  dos súditos?  Maquiavel 
inicia  o  capítulo 
XVII  sustentando  justamente 
que  “todo  príncipe deve 
desejar  ser  considerado 
clemente  e  não 
cruel”,  usando,  porém, 
a  clemência  com prudência, pois a “piedade excessiva”
pode permitir “desordens” (Ibidem, p.99). Sobre o príncipe prudente, destaca
“que a excessiva confiança não o torne incauto e a excessiva desconfiança não o
torne intolerável” (Ibidem, p.100). 
A
resposta de Maquiavel é que é melhor ser amado e temido, mas destaca  que 
“é  muito  mais 
seguro  ser  temido 
do  que  amado, 
no  caso  de 
ser  preciso renunciar a um dos
dois” (Ibidem, p.100). O significado de ser temido, porém, não é o mesmo de ser
odiado. De fato, para ele, “o príncipe deve se fazer temer de um modo que, se
não conquista o amor, evita o ódio. É possível ser, ao mesmo tempo, temido, mas
não odiado” (Ibidem, p.101). Dessa
forma, ser temido pode ser interpretado como agir com a firmeza necessária para
ser respeitado, sem ultrapassar o limite da crueldade, que atrairia o ódio,
rejeitado por Maquiavel na lógica das virtudes políticas do príncipe ideal. Mas
por  qual 
motivo  o  secretário 
florentino  sustenta  a 
necessidade  de  firmeza 
resoluta,  de respeito  coercitivo? 
A  motivação  de 
Maquiavel  é  sempre 
a  busca  da 
manutenção inteligente  do  poder,  
evitando  as  desordens 
derivadas  da   ingenuidade, um dos ingredientes  negativos 
(politicamente  não-virtuoso)  do  príncipe  hesitante, 
pusilânime, que não aprendeu a identificar   o  
humor   político real dos seus interlocutores,
eventualmente camuflado em uma representação apenas aparentemente  favorável ao príncipe. E a explicação dessa
representação política  (falsificação),  encontra-se na interpretação moral de Maquiavel
sobre a ambiguidade da natureza humana: 
Geralmente,  pode-se 
dizer  que  os  homens  são 
ingratos,  volúveis, mentirosos,
traiçoeiros, covardes, ávidos por dinheiro. Se lhes fazes o bem, todos estão
contigo. Oferecem-te o sangue, as coisas, a vida, os filhos, como disse antes,
quando a  necessidade está longe de ti.
Mas quando a necessidade chega perto, eles se rebelam. E o príncipe que havia
se baseado completamente nas palavras deles, se não tiver outras defesas,
arruína-se (1996, p.100-101).
A
aliança política de um príncipe com o povo, portanto, é necessária, mas não pode  ser 
incauta.  Para  a 
sustentação  da  unidade 
política  do  principado, em caso de adversidade política,
o ser temido é ingrediente necessário, obrigatório, mas no sentido de não ser
odiado, pois o ódio, diferente do temor, segundo a hermenêutica política de Maquiavel,
acelera a ruína política em vez de superá-la: o príncipe sábio e prudente “deve
somente cuidar para fugir do ódio” (Ibidem, p.103). 
Segundo  Maquiavel, 
portanto,  os  seres 
humanos  são  moralmente 
ambíguos, podendo agir com bondade ou com maldade. Ao afirmar que “os
homens esquecem mais rápido a morte do pai do que a perda do patrimônio” (1996,
p.101), ele recomenda que não se toque em seus bens, pois isso provoca ódio, ou
seja, mais uma justificativa para o emprego da inteligência política fundada na
prudência, que, em algumas  situações, “consiste
em saber reconhecer as qualidades dos inconvenientes e ver o menos prejudicial como
sendo bom” (Ibidem, p.133). 
A
palavra “prudência” é frequente em O Príncipe, e Maquiavel usa também o termo
“prudentíssimos” (1996,  p.137) ao
destacar a necessidade de os príncipes defenderem-se dos “aduladores, dos quais
as cortes estão repletas”, e que ele classifica como sendo uma “peste” (Ibidem,
p.137). Porém, há também o perigo oposto, que é o de permitir que todos digam a
verdade ao príncipe, pois “quando todos podem te dizer a verdade, falta-te a
reverência” (Ibidem,  p.137). Entre a adulação
e a disseminação de conselheiros sinceros, segundo Maquiavel 
um
príncipe prudente deve escolher  uma  terceira 
solução,  elegendo homens sábios
para o seu governo. Só a eles deve permitir que digam a verdade e só a respeito
do que lhes perguntar e nada mais. Mas deve lhes perguntar sobre tudo, ouvir a
opinião deles para depois deliberar sozinho, como achar certo (Ibidem, p.137). 
A
sabedoria do príncipe, porém, segundo Maquiavel, não está nos conselhos que ouve.
“Um príncipe que não seja sábio nunca ouvirá conselhos uníssonos, nem saberá sintetizá-los”,
continua o pensador florentino, que conclui tal observação destacando que “os
bons conselhos, de onde quer que provenham, nascem da prudência do príncipe e
não a prudência do príncipe dos bons conselhos” (Ibidem, p.139).
Considerações conclusivas
A
maior virtude cognitiva de um príncipe, portanto, é sua inteligência indutivo-hermenêutica,  associada 
à prática da prudência e “firmeza de ânimo” (Ibidem,  p.113).
Na
concretização de tal firmeza resoluta pela manutenção inteligente e prudente do  poder, 
Maquiavel  sugere  que  o  príncipe 
sábio  e  prudente 
governe  unindo  em 
si  a sutileza  da 
raposa,  que  descobre 
as  armadilhas  camufladas,  e 
a  força  firme 
do  leão, sabendo quando usar uma
ou outra dessas duas modalidades diferentes e complementares de força política.
O  príncipe 
virtuoso,  portanto,  não  é  o 
príncipe  odiado,  não 
é  o  que 
busca  a manutenção do poder a
qualquer custo. O príncipe virtuoso não é “odioso e desprezível”, e  ele 
“torna-se  desprezível  quando 
é  considerado  volúvel, 
superficial,  efeminado, pusilânime,
indeciso” (Ibidem, p.109). Maquiavel constatou, em síntese, que “o ódio e o desprezo
foram a razão da ruína” de muitos príncipes (Ibidem, p.121). Assim, nem odioso nem  desprezível, 
mas  sábio,  prudente, 
resoluto  para  “conquistar 
e  manter  o 
Estado” (Ibidem, p.108); mantê-lo “bem ordenado” (Ibidem, p112) e
“seguro” (Ibidem, p.127).
Em
suma, manutenção inteligente do poder, ancorada em cálculos permanentes de
previsibilidade dos custos políticos das tomadas de decisão sob a ótica da
realização da “benivolenzia populare” (1988, p.95, 96) em função da
estabilidade do principado.
Bibliografia
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